domingo, 29 de novembro de 2015

A mulher do médico e o Cão das lágrimas



Há no Ensaio sobre a cegueira duas figuras representativas na relação Humano X Animal não humano: a mulher do médico (a única que não ficou cega) e o cão das lágrimas (que lambe as lágrimas da mulher do médico).

A mulher do médico


“(...) perdoem-me a prelecção moralística, é que vocês não sabem, não o podem saber, o que é ter olhos num mundo de cegos, não sou rainha, não, sou simplesmente a que nasceu para ver o horror, vocês sentem-no, eu sinto-o e vejo-o,” (p. 262).
(...) De que me serve ver. Servira-lhe para saber do horror mais do que pudera imaginar alguma vez, servira-lhe para ter desejado estar cega, nada senão isso.” (p. 152).
Levando em consideração os princípios da Ética Animal, a mulher do médico seria a representação da sensibilidade do animal, pois ela está no manicômio (abatedouro) junto aos cegos, mas ela enxerga. Portanto, por mais que os cegos sintam a condição degradante a que estão expostos, eles não veem o que acontece. A mulher do médico, além de sentir, também vê. Ela é como o animal que vê a outro animal sendo morto ou devorado por um ser humano, como ocorre na cena a seguir:
“Numa praça rodeada de árvores, com uma estátua ao centro, uma matilha de cães devora um homem. Devia ter morrido há pouco tempo, os membros não estão rígidos, nota-se quando os cães os sacodem para arrancar ao osso a carne filada pelos dentes. Um corvo saltita à procura de uma aberta para chegar-se também à pitança. (...)” (SARAMAGO, 2015, p. 251).
Enquanto os seres humanos são animalizados, os animais assumem o papel dos seres humanos não só por comerem a carne do humano, mas também porque eles enxergam.
“(...) só havia uma mulher que não tinha os olhos tapados porque já os levava arrancados numa bandeja de prata. (...)” (SARAMAGO, 2015, p. 301).
Essa imagem que não tinha os olhos tapados é como essa mulher que não é cega. Ela enxerga, porém depois de todo o horror que viu  é como se tivesse seus olhos arrancados diante de tanta crueldade.

O cão das lágrimas


Já o cão das lágrimas é a representação do humano que tem consideração pelos sentimentos do animal. Ele se separa dos outros cães para acompanhar a mulher que chora e de quem ele bebe as lágrimas. É como o humano que se separa dos outros humanos para consolar ao animal comovido.
“O cão das lágrimas vinha aí, com o focinho rente ao chão como se estivesse a seguir um rasto, questão de costume, porque desta vez o simples olhar bastava para encontrar aquela a quem procura.” (SARAMAGO, 2015, p. 252).
“(...) O cão das lágrimas aproxima-se, mas a morte intimida-o, ainda dá dois passos, de súbito o pelo encrespou-se-lhe, um uivo lacerante saiu-lhe da garganta, o mal deste cão foi ter-se chegado tanto aos humanos, vai acabar por sofrer como eles. (...)” (SARAMAGO, 2015, p. 295).
É na figura desse cão que mais poderá ser percebido o espaço que os animais não humanos ganham no mundo quando os seres humanos são atingidos pela cegueira branca.
“(...) O cão das lágrimas parou indeciso no limiar. É que, apesar da liberdade de movimentos de que têm gozado os cães nos últimos meses, mantinha-se geneticamente incorporado no cérebro de todos eles a proibição que um dia, em remotos tempos, caiu sobre a espécie, a proibição de entrarem nas igrejas, provavelmente a culpa teve-a aquele outro código genético que lhes ordena marcar o terreno aonde quer que cheguem. (...)”

Desfecho

Por fim, todos são curados da cegueira, mas o mundo jamais será como era antes:
“(...) Importa o fato aqui e agora e a repercussão desse fato no universo interior das personagens.” (LIBANORI; JARDIM, p. 197)
“(...) Queres que te diga o que penso, Diz, Penso que não cegámos, penso que estamos cegos, Cegos que veem, Cegos que, vendo, não veem.” (SARAMAGO, 2015, p. 310).


Imagem disponível em: <http://galerageek.com.br/wp-content/uploads/2015/02/ensaio-sobre-a-cegueira2jpg.jpg>. Acesso em: 29/11/15.

LIBANORI, Evely Vânia; JARDIM, Maiara Usai. "Ética animal em Clarice Lispector". In: BRAGA, Elda Firmo; DIOGO, Rita de Cássia Miranda; LIBANORI, Evely Vânia. In: Representação animal na literatura. Rio de Janeiro: Oficina da Leitura, 2015.
SARAMAGO, José. Ensaio sobre a cegueira. 70. reimp. São Paulo: Companhia das Letras, 2015.


Quarentena: como animais em um abatedouro



Quando a população começa a ser contagiada pela cegueira branca, as autoridades decidem colocar os cegos em quarentena. Essa quarentena consiste em hospedá-los, sob uma série de regras, em um manicômio que se encontrava abandonado.
A situação vivenciada pelos cegos nesse manicômio é semelhante àquela que os animais de um abatedouro vivenciam: são impedidos de sair, obrigados a viver em meio à sujeira de suas próprias vezes, desprovidos de quaisquer direitos.
“(...) lá iam, agarrados à barriga ou apertando as pernas, à procura de três palmos de chão limpo, se os havia entre um contínuo tapete de excrementos mil vezes pisado, (…)”. (SARAMAGO, 2015, p. 134).
Seu único contato com o mundo exterior é através da comida que é deixada três vezes ao dia à porta do manicômio.
Nessa convivência no manicômio/abatedouro, as características que diferenciariam ser humano de animal não humano desaparecem, eles apenas existem, não têm mais controle algum sobre suas vidas, até mesmo seus nomes deixam de ser relevantes para identificá-los. O pensamento das autoridades é quase unânime:
“(…) O sargento ainda disse, Isto o melhor era deixá-los morrer à fome, morrendo o bicho acabava-se a peçonha. (…)”
Ou seja, são como bichos para aqueles que ainda enxergam. Além de bichos, estão doentes e isso seria o suficiente para que fossem exterminados. Porém, é esse pensamento que é combatido por Saramago ao mostrar como esses “bichos” se sentem: a agonia, o terror, o sofrimento, tudo exposto. Eles não se sentem dessa forma apenas porque são seres humanos, eles se sentem assim porque as condições a que estão sendo submetidos são insuportáveis até mesmo para seres que não têm poder de opinar em suas próprias vidas e não são mais considerados "humanos".

Imagem disponível em: <http://veganos.org.br/porcos_7.jpg>. Acesso em: 29/11/15.
SARAMAGO, José. Ensaio sobre a cegueira. 70. reimp. São Paulo: Companhia das Letras, 2015.