Há no Ensaio
sobre a cegueira duas figuras representativas na relação Humano X Animal
não humano: a mulher do médico (a única que não ficou cega) e o cão das
lágrimas (que lambe as lágrimas da mulher do médico).
A mulher do médico
“(...) perdoem-me a prelecção moralística, é que vocês não sabem, não o podem saber, o que é ter olhos num mundo de cegos, não sou rainha, não, sou simplesmente a que nasceu para ver o horror, vocês sentem-no, eu sinto-o e vejo-o,” (p. 262).
(...) De que me serve ver. Servira-lhe para saber do horror mais do que pudera imaginar alguma vez, servira-lhe para ter desejado estar cega, nada senão isso.” (p. 152).
Levando em consideração os princípios da Ética
Animal, a mulher do médico seria a representação da sensibilidade do animal,
pois ela está no manicômio (abatedouro) junto aos cegos, mas ela enxerga. Portanto, por mais que os cegos sintam a condição degradante a que estão
expostos, eles não veem o que acontece. A mulher do médico, além de sentir,
também vê. Ela é como o animal que vê a outro animal sendo morto ou devorado
por um ser humano, como ocorre na cena a seguir:
“Numa praça rodeada de árvores, com uma estátua ao centro, uma matilha de cães devora um homem. Devia ter morrido há pouco tempo, os membros não estão rígidos, nota-se quando os cães os sacodem para arrancar ao osso a carne filada pelos dentes. Um corvo saltita à procura de uma aberta para chegar-se também à pitança. (...)” (SARAMAGO, 2015, p. 251).
Enquanto os seres humanos são
animalizados, os animais assumem o papel dos seres humanos não só por comerem a
carne do humano, mas também porque eles enxergam.
“(...) só havia uma mulher que não tinha os olhos tapados porque já os levava arrancados numa bandeja de prata. (...)” (SARAMAGO, 2015, p. 301).
Essa imagem que não tinha os olhos tapados é como
essa mulher que não é cega. Ela enxerga, porém depois de todo o horror que viu é como se tivesse seus olhos arrancados diante de tanta crueldade.
O cão das lágrimas
Já o cão das lágrimas é a representação do humano
que tem consideração pelos sentimentos do animal. Ele se separa dos outros cães para
acompanhar a mulher que chora e de quem ele bebe as lágrimas. É como o humano que
se separa dos outros humanos para consolar ao animal comovido.
“O cão das lágrimas vinha aí, com o focinho rente ao chão como se estivesse a seguir um rasto, questão de costume, porque desta vez o simples olhar bastava para encontrar aquela a quem procura.” (SARAMAGO, 2015, p. 252).
“(...) O cão das lágrimas aproxima-se, mas a morte intimida-o, ainda dá dois passos, de súbito o pelo encrespou-se-lhe, um uivo lacerante saiu-lhe da garganta, o mal deste cão foi ter-se chegado tanto aos humanos, vai acabar por sofrer como eles. (...)” (SARAMAGO, 2015, p. 295).
É na figura desse cão que mais poderá ser percebido
o espaço que os animais não humanos ganham no mundo quando os seres humanos são
atingidos pela cegueira branca.
“(...) O cão das lágrimas parou indeciso no limiar. É que, apesar da liberdade de movimentos de que têm gozado os cães nos últimos meses, mantinha-se geneticamente incorporado no cérebro de todos eles a proibição que um dia, em remotos tempos, caiu sobre a espécie, a proibição de entrarem nas igrejas, provavelmente a culpa teve-a aquele outro código genético que lhes ordena marcar o terreno aonde quer que cheguem. (...)”
Desfecho
Por fim, todos são curados da cegueira, mas o mundo
jamais será como era antes:
“(...) Importa o fato aqui e agora e a repercussão desse fato no universo interior das personagens.” (LIBANORI; JARDIM, p. 197)
“(...) Queres que te diga o que penso, Diz, Penso que não cegámos, penso que estamos cegos, Cegos que veem, Cegos que, vendo, não veem.” (SARAMAGO, 2015, p. 310).
Imagem disponível em: <http://galerageek.com.br/wp-content/uploads/2015/02/ensaio-sobre-a-cegueira2jpg.jpg>. Acesso em: 29/11/15.
LIBANORI, Evely Vânia; JARDIM, Maiara Usai. "Ética animal em Clarice Lispector". In: BRAGA, Elda Firmo; DIOGO, Rita de Cássia Miranda; LIBANORI, Evely Vânia. In: Representação animal na literatura. Rio de Janeiro: Oficina da Leitura, 2015.
SARAMAGO, José. Ensaio sobre a cegueira. 70. reimp. São Paulo:
Companhia das Letras, 2015.